sexta-feira, 29 de julho de 2011

«lágrimas de dois gumes»


A noite descia suavemente sobre os meus pés dormentes, de tanto caminhar em vitrinas pardas, agasalhadas pela nudez de manequins que se passeavam em suspiros de glamour.
Não conseguia deixar de pensar naqueles corpos entrelaçados uns nos outros, como se fossem heras a trepar pelas minhas pernas febris de desejo em tons verdejantes de seda pura. Tinha fome do meu corpo ou de outro corpo qualquer, que apenas me tocasse com luvas de pelica, delicadas sonatas num negro piano de cuada.
Toquei-me, e, as pautas escritas em folhas brancas deslizavam em gestos harmoniosos o romper da aurora, o prazer aumentava com a mesma fúria das mãos que saciavam o estremecer das teclas, que se rompiam em orgias de cor preta e branca.
Caí num êxtase selvagem de palmas destiladas, deitada num palco onde as cortinas se fecharam num correr purpúreo de incenso mort du petit Jasmin.
Quando acordei as árvores enroupavam o meu corpo desfolhado, estava submersa em lágrimas de dois gumes num banco de jardim.
O tempo tinha-se esquecido da madame coquet…Olhei de novo as vitrinas, não passavam de folhas de jornal amareladas, lacradas por letras crescentes…” Pour la vente”.

Conceição Bernardino

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Os filhos do Corno de África





A terra é a minha cama
e o corpo humilhado da minha mãe, a cabeceira
à noite os bichos
escoram-me do frio e comem outros bichos
que nutrem a minha carne podre
não sei o que é um sorriso
nunca conheci outra vida se não esta

Somos tantos
deitados na mesma cama
já não me levanto
a astenia das minhas pernas
já não seguram o meu corpo
às vezes a minha mãe
mete-me um punhado de farinha na boca
para que a fome não me coma

Não sei se sou criança ou menino
aqui somos todos iguais
não existe idades nem formas
as dores vão deformando
as formas do meu corpo
e o medo assombra-me a sombra
que se cala por baixo de mim

Se pensam que nos matam enganam-se…
…Mutilam-nos

Os ossos desfazem-se lentamente
os dentes cravam a terra
tentam libar água das noites húmidas

Todos os dias adormecem milhares
na boca do inferno

Por mais que os poetas destilem
os cantores clamem
os pintores nos esbocem
jamais alguém conseguirá
abrir as portas da galeria horrenda
e expor o massacre da morte
que nos engole em jejum


Conceição Bernardino

domingo, 24 de julho de 2011

Adeus Amy WineHouse…



Cruéis sensações que me despem em sexo banal, em retraídas masturbações hórridas, não quero um corpo. Não quero que o meu corpo se misture na conformidade de uma simples penetração sem que a arte o envolva em lirismo, em espasmos poeticamente concedidos.

Sei que os olhos por onde me passeio libam o meu peito atrevido, de uma menina com impaciência de mulher.

Que se encarnicem todos esses olhares!

Todos eles me olham com o mesmo sentido, fornicar como se fornica uma cadela com cio. Chega de me censurar, se me procuro entre olhares desejosos, quase tão cegos de gozo quanto os meus.

E agora?

Condenem-me ou chamem um padre que exorcize este ardor que sinto, quando me esguio nos lençóis devassos, mutilados pelo sexo. Quando penso que todo este cenário não passa de uma ilusão carnal, o meu sonho morre da mesma forma arcaica como o pintei. A impotência mora no descarnar de rostos fingidos onde definho os meus gemidos

quase tão decrépitos como os palhaços que nunca chegaram a sorrir.

Parto sem me vir, como outra qualquer prostituta, onde o adeus é um pronuncio de versos fúteis, dentro de uma garrafa de álcool qualquer. Dou um “xuto” e a solidão avança sem me condenar às exigências da linha recta onde pendurei as minhas veias.

Conceição Bernardino