quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

réstia de qualquer coisa


Vi aqueles meninos cercados de uma febril dolência, cobertos de moscas imundas. As costelas uniformes, salientes, sobre a pele desidratada, carcomida pelo sol abrasador que queima a secura de um povo, espalhado entre os cadáveres e as fendas inférteis da terra.
Aloja-se a nudez, as barrigas avolumadas na crueldade da fome, respiram o cheiro pestilento que a morte sobeja no horripilante.
Não consigo sequer descrever, meu olhar paralisou, tudo o que a minha mente sentia.
Olhei à minha volta, eram milhares que em silêncio pediam-me apenas um sorriso, uma réstia de qualquer coisa.
Nesse preciso momento, implorei!
Onde estás Deus?
Porque deixas que o egotismo dos homens tire proveito das planícies extensas da miséria?

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Esconjurados pela indecência


quero sentir as tuas unhas cravadas nas minhas costas
como uma suplica de um templo inexistente
onde a Besta me possui e eu deliro
num carrossel de espelhos malditos
onde os nossos corpos se perdem esfaimados
condenados pelas línguas empoleiradas
que nos olham insaciáveis de escrúpulos
queima-me nos teus braços, é lá que eu quero arder
nos gritos dos nossos gemidos
esconjurados pela indecência insalubre
da insalubridade dos dogmatizados
não quero mais calar a voz de quem me cala
não beberei mais espinhos a sangue frio
porque o sabor da rosa que beijamos é o mesmo
quero sentir o humedecer da terra
e sublimar-me no lívido do teu corpo
como uma orquídea selvagem

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

adormeço nas brumas do rio...




Ameiga este corpo, débil e cansado,
que se curva sobre o teu leito.

Já não consigo humedecer
o barro com que trabalhei,
a forma escultural do teu ser.

As minhas mãos já não conseguem sentir
a pureza das máculas que as enfraquecem.

Já pertenço ao lamaçal, abraça-me!

Sempre te pertenci sem pertença alguma,
moldei-te, cresci contigo, floresci da terra
e hoje adormeço nas brumas do rio.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Lamento de uma guitarra


A visão nega-me o ensejo da luz sadia
em cera queimada, já sem pavio.
Pudera eu ser a razão
de uma razão qualquer errante.

Deixem-me aqui quieta
no medo que já não me amedronta
onde as candeias se apagam à noite,
no lamento de uma guitarra.

…pudera eu ser o que já fui
sem ser o que não mais serei…

Deixem-me aqui
onde o meu fado mora também.
Onde o silêncio sente e escuta
este sentir, vazio de ninguém.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Rasgo o céu no meu peito




Termino-me na manhã que não chega,
nas ruas de terra batida, onde os meus passos já não deixam marcas.

Rasgo o céu no meu peito
à procura dos gritos esfomeados,
dos melros que esvoaçam nos pinheirais da minha inocência.
As cartas eram escritas com letras acetinadas sem direcção,
lavradas na terra em folhas de hortelã,
o tempo esgueirou-se do meu olhar adocicado,
roubou-me as papoilas,
onde eu repousava o cálice compassivo da vida.

Rasgo o céu no meu peito
aonde as esmolas são dadas sem caridade,
como quem apregoa hipérboles decadentes
nos murmúrios das fontes, enfadadas pela alcoolemia
das larvas dos meus braços, à espera da metamorfose
obsoleta das palavras que estrugem na boca do inferno.

Termino-me na manhã que não chega,
e renasço na chegada onde me termino.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Olha-me sem me veres…



Olho-te sem pudor de tão impúdica que sou
viver é um evento obscuro de uma beleza tão rara
que afaga a própria existência do que não existe
olha-me sem temeres o que já não temes.

(Inventa-me de novo no teu esplendor)

Não me olhes ao espelho onde a minha imagem
já não projecta reflexos
nem me guardes como uma bíblia sem salmos
quero-me assim límpida para te profanar
na imortalidade dos mortais.

Procura-me nas forças do mundo intangível
onde nos encontramos intactos
de qualquer frugalidade imediata
leva-me mas olha-me sem me veres.


terça-feira, 22 de setembro de 2009

Cega-me a foice…



As terras áridas de centeio
correm-me nas veias
o negro espalha-se
pelos campos da fome,
gela-me o frio
sobre as palhas
do trigo sem sustento.
.
.
Cega-me a foice…
…na cegueira da colheita
.
.
Os ma trigais secaram
na boca de quem as alimenta,
as mãos enrugadas
carregam o fardo
no vazio das cinzas avermelhadas
queimadas em solidão.
.
.
Cega-me a foice…
…na cegueira do nada
que me resta.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Racismo


Só lá ficaram as corjas do sonho
naquelas mãos manchadas de sangue,
embriagadas de um vermelho purpúreo
onde os apelidos eram escritos
por ordem alfanumérica
sem mágoa nem piedade.

As folhas iam caindo, uma a uma
esmorecidas, amareladas já sem confiança,
espalhadas aos montes
sem qualquer utilidade,
malditas cores hostilizadas
que se erguem em bandeiras,
como quem ergue punhais,
uns gritam palavras de ordem,
outros matam-se como animais
quando as mãos se cruzam
e os vultos se misturam.

A distinção simplesmente desaparece
na própria semelhança
de sermos apenas
tão parecidos, tão iguais

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Retirem-nos estes cadeados



Libertem-me!
Retirem-me estes cadeados,
que se escondem na vergonha
nos meus pulsos de mulher.

Vivo como uma escrava
encarcerada em roupas malditas,
sinto o chão desabar
sobre os meus pés descalços.

Sou um pedaço de carne
que atiram aos cães
quando deixar de ser útil
libertem-me!

Desta libertinagem,
deste país,
onde os homens
nos olham como se fossemos
a maldição.

in Linhas Incertas

José Luís Lopes diz sobre o meu livro Linhas Incertas

Linhas Incertas - Conceição Bernardino

Olá Conceição Bernardino,
Pensei enviar-te um MP para te dar conta da satisfação que o teu livro “Linhas Incertas” me proporcionou, mas pensei que era injusto para Autora guardar para mim algo que deveria ser divulgado para todos aqueles que gostam de ler, especialmente poesia.
Mentiria se te dissesse que não me surpreendeste, peço desculpa por este laivo de machismo, mas esta mente irracional e ao fim de quase meio século, ainda é capaz de produzir sempre à revelia da minha parte consciente estereótipos de educação. Esperava uma escrita mais virada para a autora, mais lírica, sentimental, enganei-me redondamente!
Em boa hora comecei a ler e reler, como eu sempre gosto de fazer, em paz… sem as pressas que esta vida constrói, retirando-nos a acidez crítica que obrigatoriamente deveríamos ter, e ser capaz de ver sem auxílio de um qualquer livro, por melhor que seja escrito ou desenhado. Mas foi o que o teu livro me fez, descer aos mais necessitados, dar-lhes visibilidade, dar-lhes voz e volume na minha mente, nada disseste ou escreveste que eu não soubesse, apenas foste capaz de armar as palavras de raiva e força para esta maldade que dia-a-dia o mundo alimenta, e ao mesmo tempo vesti-las de bondade, amor e compreensão, para melhor dizeres o que apenas pode ser dito com carinho e bondade. Minha amiga, só alguém com grande carácter e verdadeiramente sensível, madura, é capaz de descrever os outros (desfavorecidos, sem a sorte da vida) como tu o fazes, parabéns pelos textos, parabéns pela poesia, mas acima de tudo parabéns pela arte de ver o que todos vêem, mas apenas os “escolhidos” são capazes de escrever esta doença das sociedades, esta velha, nova preocupação social.
Para finalizar deixei-me cair no engodo de escolher um escrito, não foi fácil, gosto de desafios, mas detesto separar o que está junto, abomino ter que deixar alguma coisa para trás, até uma escolha que nada afecta a Autora deixa-me triste por preferir mais um poema do que outro, escolhi então dois poemas para me decidir por um: “Transparência da dor” e “Gratidão”.
Destes, escolhi um sem saber o que tinha a mais do que o outro, talvez porque choras a escrever.Eu também!

Transparência da dor

Trago nas mãos o esquecimento
Que nada mais posso escrever

Se os meus versos fossem
Almas, que chorassem diante
De quem os chega a ler.

Os meus olhos são rios
Que se alargam nas tempestades,
São dilúvios aprofundados
Que se desfazem nas páginas
Da minha dor

Tudo se torna em ruínas
No âmago do meu ser.

Ai… como eu desejava
Que os meus versos chorassem,
Como eu choro
Quando estou a escrever…

Um beijo grato deste novo teu leitor,
José Luís Lopes

JoséLuísLopes http://colunadosdeuses.blogspot.com/

Carlos Teixeira Luís diz sobre o meu livro Linhas Incertas

Carlos Teixeira Luis o autor de"Histórias do Deserto", lançado em 8 Maio 09. Poemas e prosas. Promoção especial em Agosto. Peça ao autor.
http://verderude.blogspot.com/
http://estoriasdodeserto.blogspot.com/




Dedicou este poema ao meu livro Linhas Incertas
Incerto é o coração de quem escreve,
De quem descreve
O inferno devorador da realidade
E o amor,
O outro amor das coisas
Simples.

Estas linhas “deslizam sobre o meu rosto”
E só as leio
Como quem as vive.

Esta poesia sofre a agonia da verdade,
Intensa voz de quem clama
No silêncio certas dores.

Esta poesia tem várias vozes,
Umas duras “cospem raiva como cães”,
Outras de “jovialidade humilde”.

Esta poesia ama e odeia,
Forte como um sol, livre,
Voz de vozes caladas.

Como diz a poetisa, esta poesia
Vive do sangue derramado e
“amordaçam-me as cordas vocais” diz a voz...

Intenso realismo, intenso secretismo
De expressões ricas e vivas.
Poesia nobre, boa e sofrida.

A metáfora forte vive neste local,
Colinas verdes de urze e vento,
Terra que nos habita e nos acolhe.

Paz aos homens e mulheres de Darfur,
Até ao coração do leitor de sofrimentos...
Paz para os de coração quente e bom
Os que escrevem, os que lembram,
Os que sentem, o que não é nosso
Mas por nós vivido, dentro, dentro...

2 ago. 09
Carlos Teixeira Luis

O livro de Conceição Bernardino "Linhas Incertas", editado pela editora Mosaico de Palavras, traz uma poesia madura, intensa e atenta ao mundo que geme de dor.
A poetisa dá voz a vários personagens que gritam no silêncio. Dá-lhes dignidade e vida.
Os ecos de muitos corações perdidos fazem-se ouvir. Não é uma poesia fechada em si, mas sim aberta ao cosmos interior de cada um. Recomendo. Para ser lida com vagar e consciência aberta.


Música e voz oferecida pelo meu amigo do Luso-Poemas JoséSilveira, ao poema de Carlos Teixeira Luís dedicado ao meu livro.

José Silveira http://www.contei-porai.blogspot.com/ http://www.palavrasdepoeta.blogspot.com/


Música e voz

http://www.clesioboeira.com/meump3/ESPEC-linhas.mp3

Apresentação do Linhas Incertas pela Mosaico de Palavras Editora

terça-feira, 21 de julho de 2009

Acravei-me aos espinhos soterrados


As rosas dissecaram-se no meu corpo envelhecido
curvado pelos espinhos que ia cravando
no despertar de cada aurora pardacenta
o papel jazia lamentos, escrevia anáforas

Sem sentido, sem rumo…
…sem significado algum

Acravei-me aos espinhos soterrados
neste corpo tão cansado e estéril
arranquei-lhe as raízes, suspirei.
O lamento calou-se
numa folha branca de alegorias

Com sentido, com rumo…
…do significante ao significado
in Linhas Incertas

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Linhas incertas



Linhas incertas

Deslizam sobre o meu rosto
lágrimas multifacetadas
vão caindo, mansamente
sem explicação.

Deixam marcas perfeitas
como o arco-íris
que se espelha lá no céu...

De onde vêm não sei
deslizam, caem
sobre as linhas incertas
desta certeza tão repleta,
como quem escreve
sobre as lágrimas de alguém.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Linhas Incertas - O meu livro de poesia social




Os textos de Conceição Bernardino não escapam à descoberta de um determinado ponto de vista, ou seja, ao inevitável pressuposto de um sujeito, já que não existe uma análise absolutamente neutra, sem indivíduo. Cada poema é uma situação de comunicação em que a subjectividade dá lugar à apresentação claramente incisiva de alguém que gira nas esferas de valores observadas e colhidas na sociedade, ciência, moral e arte, a reflexão de um acto de conhecimento da autora em contacto com o mundo real, as suas injustiças, guerras e desamores. (…)
A poesia de “Linhas incertas” tem uma força imagética que nos roça a pele e penetra a carne, uma magnitude que, poesia dentro, se faz a cada verso mais crua, mais real. A presença de predadores na esquina dos desprevenidos, dos simples e dos desprotegidos! Da passividade à actividade, o sujeito da enunciação instiga “Crentes do nada, do vazio, levantai a cruz,/que a morte cala todos os dias...” em “ Sexta-feira Santa”; as palavras oferecem-se à partilha da dor: “Sou um pedaço de carne/que atiram aos cães”, em “Retirem-me estes cadeados

Prefácio de Goreti Dias

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Peço Desculpa

O meu blog encontra-se neste estado...foi alvo de um virus que fez com que eu tivesse eliminado tudo.
Fui obrigada a eliminar o blog Versatilidades e o Gritos Mudos...penso dar uma nova vida a este blog, nenhum virus me vai impedir de continuar a minha caminhada.
Obrigada e desculpem.